segunda-feira, 12 de maio de 2014

A importância de uma identidade

Trabalhei num departamento de certa empresa que era bastante rigorosa com horários e isso criou uma cultura de pontualidade entre os funcionários bastante interessante. Havia pessoas que iniciavam sua jornada de trabalho às 07:30 h e chegavam na portaria da empresa às 06:45 h, às vezes 06:30 h.
O horário de almoço também tinha esses mesmos padrões. Porém, nossa equipe de produção precisava sair mais cedo para tomar banho e somente após a higienização é que começava a contar o horário de refeição. Como não havia nenhuma catraca que registrasse esses intervalos, algumas pessoas passaram a dar um “jeitinho brasileiro” no seu tempo de almoço.
Saíam 11:20 h do local de trabalho, tomavam seus banhos e estavam prontos para almoçar a partir de 11:40 h. Voltavam ao vestiário por volta de 12:10 h e só trocavam de roupa a partir das 13:00 h, chegando ao local de trabalho novamente às 13:20 h, sendo que o horário de almoço deveria ser de uma hora.
Esse “jeitinho” trouxe uma péssima reputação para nossa equipe. Muitas pessoas perderam oportunidades de promoção em função da má fama naquela época. A equipe administrativa costumava nem fazer hora de almoço algumas vezes, mas a fama se alastrou por todo o grupo e trouxe junto um grande mal estar. Todavia, como diz o provérbio popular, “até explicar que focinho de porco não é tomada...”.
Da mesma forma, os “evangélicos” têm sido ajuntados dentro de um mesmo saco e com isso vários estereótipos têm sido mal aplicados. Quem nunca ouviu que em “igreja evangélica só pede dinheiro”? Ou que crente é “bitolado”, “fanático” ou “alienado”? São percepções erradas que algumas pessoas têm dos cristãos evangélicos no Brasil.
Aliás, o próprio termo evangélico, tornou-se genérico. Diversas denominações são rotuladas como parte de um mesmo grupo quando na verdade nem sempre o são. Exemplo disso é a classificação dos Adventistas pelo censo do IBGE, que foram inseridos entre os evangélicos de missão.
Em outras estatísticas, como a do Pew Research Center e a da Enciclopédia Mundial do Cristianismo, as Testemunhas de Jeová e os mórmons são encontrados em meio aos cristãos. Mas por que essas distinções seriam importantes? Porque nossas características falam de nossa identidade.

A importância de uma identidade
A discussão a respeito da importância identitária tem seu lugar de preeminência nas ciências sociais, sendo abordada principalmente na antropologia, arqueologia, psicologia e sociologia. A relevância de se ter uma identidade reside no fato de que, ela (a identidade) faz com que um grupo se diferencie do outro. Os maias não são os astecas e vice-versa.
Essas características distintivas podem ser encontradas de diversas formas, dentre as quais podemos destacar: os costumes (formas de pensar, sentir e agir), as tradições e as regras. Brandão afirma que a expressão “identidade social” sugere um conceito que “explique por exemplo o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu...”.[1]
Woodward mostra essa realidade ao pontuar a identidade como algo relacional, isto é, um grupo que precisa ser diferenciado do outro para que ambos sejam distinguidos.[2] Embora algumas pessoas não gostem de rótulos, eles são importantes para destacar as particularidades dos grupos sociais.
Se dividirmos as principais religiões mundiais em blocos identitários, teríamos os cristãos, muçulmanos, hinduístas, budistas, judeus, sikhistas e animistas separados em galerias macros. Inequivocamente, esses grupos possuem identidades completamente distintas.
Em contrapartida, se desdobrarmos o bloco “cristãos”, por exemplo, teríamos diversos sub-blocos identitários, tais como os reformados, evangelicais, pentecostais, neopentecostais, liberais, neo-ortodoxos e católicos. Embora todos esses grupos estejam alocados em um bloco “macro”, possuem características distintivas que formam uma identidade legítima.
A maioria dessas categorias acaba sendo heterogênea. Não há possibilidade de formar uma identidade reformada-liberal ou evangélico-liberal ao mesmo tempo. Ou se é uma coisa ou se é outra. Nenhuma mutação que tente amalgamar essas posições seria bem sucedida e isso mostra a grande necessidade de desenvolver uma identidade sólida.

As identidades religiosas brasileiras
Uma forma de se obter a correta concepção de algo, é partindo da dialética do que esse algo não é. O Apóstolo Paulo, por exemplo, disse que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Se alguém definisse o reino de Deus como algo material, palpável, humanizado e físico, estaria equivocado, pois a correta concepção é oposta a esse pensamento.
Muitos fenômenos religiosos hodiernos enquadram-se na categoria “não é”. Absolutamente, o reino de Deus não é “teologia da prosperidade”. Esta pseudo-teologia enfatiza o enriquecimento misterioso e o faz de formas completamente anti-bíblicas, usando meios abomináveis para fins ainda mais inescrupulosos.
Quando se fala em “teologia da prosperidade”, estamos falando de um sistema de crença que tem um pacote mais requintado, isto é, não se limita à área financeira. Tal teologia apregoa temas como “confissão positiva” e é também conhecido como “movimento da fé”, em virtude da ênfase ao poder desta.
Confissão positiva trata-se da crença de que as palavras possuem poder quando confessadas. Essa confissão pode, na verdade, ser tanto positiva quanto negativa. Neste caso, por exemplo, se alguém disser “não vejo a hora de ter a minha casa própria”, nunca terá mesmo, pois está confessando negativamente que “não vê a hora”. O problema é que tal pensamento não se coaduna com as Escrituras e não passa de mera superstição.
Pegando carona com essa ideia é que muitos comunicadores do Evangelho gritam expressões como “eu declaro”, “eu profetizo”, “eu determino”, “eu decreto”... Como se tais expressões fossem um abracadabra para a realização de algo divinal.
Outra faceta da “teologia da prosperidade” é a sua alcunha norte-americana: “movimento da fé”. Embora não usemos tão frequentemente esse termo no Brasil, tal conceito está arraigado em nossa nação. Muitas igrejas estão vivendo uma crise de identidade e permitindo que tais “estranhezas” maculem suas origens.
O “movimento da fé” acusa a não conquista de algo, a não cura de uma enfermidade, o fracasso de determinada situação à falta de fé. Resumidamente, tal movimento não tem fé em Jesus, mas tem “fé na própria fé”. É como se Deus fosse movido pela nossa fé! A soberania nesta história não vem do alto, mas vem da fé do homem! Vale dizer: a fé não é um fim em si mesma!
Poderíamos citar várias outras identidades desconexas com o autêntico Evangelho, mas teríamos que prolongar exaustivamente nosso artigo. Aberrações como o “movimento de batalha espiritual”[3] e suas propagações que mais se assemelham a um filme de terror (lobisomens, vampiros, zumbis, etc); “movimentos apostólicos”[4] que não passam de “apostolice”; “movimentos restauracionistas”[5] que acreditam estar restaurando os ofícios primitivos e confundem “ofícios” com “ministérios”; movimentos que distorcem a doutrina da graça tais como o da “Hipergraça” ou “graça barata”[6], são exemplos disso. Enfim, a lista é grande.

Considerações finais
Do ponto de vista sociológico, a identidade precisa da diferença e a diferença da identidade. Ambas são inseparáveis.[7] Como povo “Nazareno”, precisamos conhecer nossas origens e não negociar nossa identidade. Somos um povo que nasceu da fusão entre três organizações cristãs, a saber: a Igreja do Nazareno, a Associação de Igrejas Pentecostais da América e a Igreja de Cristo de Santidade.[8] Nosso berço tem seu start up no Movimento de Santidade, cuja gênese se encontra em um dos maiores evangelistas e avivalistas da história, John Wesley. Nossa teologia é Armínio-Wesleyana.
Podemos e devemos lutar pela unidade na diversidade. Igualmente, é necessário que tenhamos uma atitude o mais irênica[9] possível. Entretanto, devemos assim agir sem abrir mão de nossas raízes e de nossa identidade. Nossa relação deve ser heterogênea com ensinos que distorçam a sã doutrina, pois assim como água e óleo não se misturam, ortodoxia e heterodoxia são inconectáveis.
Ter uma identidade é saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Somos “nazarenos” porque seguimos a Jesus de Nazaré. Ele é o nosso modelo de santidade, de caráter e de vida. Viemos de uma fusão de “santidade” e não de uma divisão individualista. Estamos neste mundo, mas não somos dele. Em breve o que é corruptível será revestido do que é incorruptível e num abrir e piscar de olhos, o que é mortal será revestido da imortalidade e poderemos nos regozijar eternamente num local que olhos não viram, ouvidos não ouviram e que jamais penetrou em coração humano. Esse lugar é o que Deus tem preparado para aqueles que o amam!
Até lá...
Vinicius Couto
Soli Deo Gloria!





[1] BRANDÃO, R. C.. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 37.
[2] SILVA, Tomaz Tadeu (Org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 7-9.
[3] O movimento de batalha espiritual ou guerra espiritual, como alguns chamam, admite e ensina doutrinas completamente estranhas às Escrituras, tais como: quebra de maldições, maldições hereditárias, mapeamento espiritual, misticismo, maniqueísmo, demonismo generalizado (tudo é o diabo), cobertura espiritual e práticas supersticiosas, dentre várias outras.
[4] O título de Apóstolo é descabido para nossos dias. Tecnicamente falando, um Apóstolo deveria ter sido testemunha ocular de Jesus e ter sido comissionado por Ele. Sendo assim, a última pessoa a preencher tais requisitos é, indubitavelmente, o Apóstolo Paulo.
[5] “Movimento restauracionista” foi um termo usado no presente artigo para se referir a certos grupos que acreditam estar restaurando os ofícios de Efésios 4.11 (Apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres). Todavia, essas nomenclaturas tratam de dons ministeriais e não de ofícios eclesiásticos.
[6] A expressão “graça barata” foi cunhada pela primeira vez pelo teólogo alemão, Dietrich Bonhoeffer, em sua obra “Discipulado”, publicada em 1937. Para Bonhoeffer, “A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, o batismo sem a disciplina comunitária, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado” (BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 10). Um propagador dessa “graça barata” na atualidade é o pastor cingapuriano Joseph Prince. Para maiores informações, acessar http://www.cacp.org.br/as-heresias-de-joseph-prince/. A graça barata tem sido mais chamada de “hipergraça” atualmente, tendo em vista a ênfase que seus proponentes dão nas conquistas do sacrifício de Cristo a despeito da santificação.
[7] SANTOS, Virgínia Inácio dos. Identidade e diferença.  Revista Mandrágora, Vol. 16, n° 16, 2010, p. 116.
[8] Manual da Igreja do Nazareno 2009-2013. Casa Nazarena de Publicações, 2009, pp. 16-19.
[9] Significa “de espírito pacífico”, que busca entender os “pontos de vista opostos antes de discordar, e, se for necessário discordar, o faz com respeito e amor” (cf. OLSON, Roger. História das Controvérsias da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2004, p. 17).