sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Conhecendo o Arminianismo (parte 1) – Eleição condicional

A discussão teológica acerca dos pontos calvinistas e arminianos não se limitam à predestinação e ao livre-arbítrio. Na verdade, esses dois pressupostos são parte de dois sistemas soteriológicos que se opõe em praticamente todos seus quesitos.
O calvinismo, por exemplo, tem esse seu sistema montado num raciocínio lógico, conhecido pelo acróstico, do inglês, TULIP, a saber: Total depravity (Depravação total), Unconditional election (Eleição incondicional), Limited atonement (Expiação limitada), Irresistible grace (Graça irresistível) e Perseverance of the saints (Perseverança dos santos).
Esses pontos foram respostas aos artigos dos remonstrantes, seguidores de Armínio, que protestaram as ideias calvinistas baseados em cinco observações, as quais podemos resumir da seguinte forma: 1) depravação total, 2) eleição condicional, 3) expiação ilimitada, 4) graça preveniente e 5) perseverança condicional.
Nosso propósito é estudar cada um dos axiomas soteriológicos supracitados, segundo a ótica arminiana. Para isso, dividiremos nosso estudo em cinco etapas, a fim de abordar com maior precisão cada um desses pontos. Ademais, optaremos por seguir nosso raciocínio na mesma ordem dos artigos da remonstrância, visando um aproveitamento mais didático.

Artigo I – Remonstrância
“Que Deus, por um eterno e imutável plano em Jesus Cristo, seu Filho, antes que fossem postos os fundamentos do mundo, determinou salvar, de entre a raça humana que tinha caído no pecado – em Cristo, por causa de Cristo e através de Cristo – aqueles que, pela graça do Santo Espírito, crerem neste seu Filho e que, pela mesma graça, perseverarem na mesma fé e obediência de fé até o fim; e, por outro lado, deixar sob o pecado e a ira os contumazes e descrentes, condenando-os como alheios a Cristo, segundo a palavra do Evangelho de Jo 3.36 e outras passagens da Escritura.”

A predestinação
Para o sistema calvinista alcançar sua lógica, ele tem seu pontapé inicial nos decretos divinos, através dos quais a predestinação encontra-se subordinada. Best, teólogo calvinista, define decreto como “uma determinação ou ordem de alguém que tem autoridade suprema”. Ele reforça, ainda, que “o propósito de Deus está fundamentado na soberania absoluta, ordenado pela sabedoria infinita, ratificado pela onipotência e cimentado pela imutabilidade”.[1]
Strong conceitua os decretos divinos como “o plano eterno pelo qual Deus tornou certos todos os eventos do universo, passados, presentes e futuros”.[2] Charles Hodge complementa dizendo que, tais decretos são eternos, imutáveis, livres, infalivelmente eficazes e relacionam-se com todos os acontecimentos, podendo ser reduzidos a um propósito divino, além de terem como objetivo central, glorificar a Deus.[3]
Historicamente, falando, Teodoro de Beza (1519-1605), bem como outros teólogos reformados, começaram a especular sobre a “ordem dos decretos divinos”.[4] Embora esses decretos fossem simultâneos e eternos (pois Deus não está limitado ao passado, presente ou futuro, estando todas as coisas eternamente presentes no plano espiritual), qual seria a ordem deles? Teria Deus decretado primeiramente a criação do mundo ou a dupla predestinação?
Através destas conjecturações, outros pontos calvinistas passaram a ser deduzidos, através do uso da lógica: se Deus decretou os eleitos e os répobros (antes, durante ou depois da fundação do mundo), então não faria sentido que Cristo morresse pelos reprovados; os eleitos, por sua vez, não teriam condições de resistirem à graça de Deus, visto que já foram predestinados mediante os decretos eternos de Deus; Finalmente, alguém que já teve sua salvação decretada desde a eternidade, como a perderia? Portanto, uma vez salvo, salvo para sempre.
A discussão sobre quando se sucedeu o decreto da predestinação teve duas vertentes, cuja primeira é o supralapsarianismo, na qual “supra” se remete a algo prioritário e antecedente e “lapsarianismo” a um lapso ou queda. Portanto, o supralapsarianismo, trata-se de “alguma coisa antes da queda”, ou seja, a eleição como primeiro dos decretos de Deus.
Olson explica que, “teologicamente, o supralapsarismo é uma forma de ordenar os decretos divinos de tal maneira que a decisão e o decreto de Deus em relação à predestinação dos seres humanos, ao céu ou ao inferno, antecede seus decretos de criar os seres humanos e permitir sua queda”,[5] cuja sequencia decretiva seria 1) a predestinação à salvação e ao castigo eterno, 2) a criação, 3) a permissão da queda, 4) o meio de salvação em Cristo e 5) a aplicação da salvação aos eleitos.
Outros calvinistas, entretanto, discordaram com essa ordem e conjecturaram os decretos em outra sequencia, perfazendo a segunda vertente lapsariana. Eles, por sua vez, ficaram conhecidos como infralapsarianistas. Segue-se o mesmo raciocínio: “infra” está para depois e “lapsarianismo” para a queda. Sendo assim, eles situaram o decreto da predestinação depois da queda de Adão.
A concepção dos decretos divinos sofre uma alteração cabal no entendimento dos teólogos arminianos. A diferença, entretanto, não se choca de imediato com as teorias lapsarianas e sim com a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, conforme podemos constatar nas palavras de Russel E. Joiner:

“Os decretos divinos são o seu plano eterno que, em virtude de suas características, faz parte de um só plano, que é imutável e eterno (Ef 3.11; Tg 1.17). São independentes e não podem ser condicionados de nenhuma maneira (Sl 135.6). Têm a ver com as ações de Deus e não com a sua natureza (Rm 3.26). Dentro desses decretos, há as ações praticadas por Deus, pelas quais Ele, embora permita que aconteçam, não é responsável. Baseado nessa distinção, torna-se possível concluir que Deus nem é o autor do mal... nem é a causa do pecado.”[6]

Essa diferença é melhor explicada pelo teólogo metodista, Samuel Wakefield. Ele descreve os decretos como sendo “os propósitos de Deus ou Sua determinação com respeito a suas criaturas” e reconhece-os como sendo eternos, livres e imutáveis, mas faz uma distinção interessante: ele classifica os decretos em absolutos e condicionais. Os primeiros são aqueles que “se relacionam com os eventos da administração divina que não dependem das ações livres das criaturas morais”. Já os condicionais são “aqueles nos quais Deus respeita as ações livres de Suas criaturas morais”. Ele cita o arrependimento, a fé e a obediência como exemplos dessas condições para a salvação do homem.[7]

Objeções à predestinação
Solano Portela definiu a predestinação como sendo “o aspecto da pré-ordenação de Deus, através do qual a salvação do crente é considerada efetuada de acordo com a vontade de Deus, que o chamou e o elegeu em Cristo, para a vida eterna, sendo a sua aceitação VOLUNTÁRIA, da pessoa e do sacrifício de Cristo, uma CONSEQUÊNCIA desta eleição e do trabalho do Espírito Santo, que efetiva esta eleição, tocando em seu coração e abrindo-lhe os olhos para as coisas espirituais”.[8]
Apesar do esforço de Portela em enfatizar a voluntariedade da aceitação do homem quanto à pessoa do salvador e Seu ato salvífico pelo pecador arrependido, e de salientar que esta aceitação trata-se de uma consequência da eleição, a doutrina da eleição incondicional continua a ser, em outras palavras, uma coercitividade divina operada através de uma graça supostamente irresistível – para não dizer imperativa – decretada desde a eternidade.
A doutrina da predestinação não é simplesmente “uma das mais difíceis de serem abordadas”,[9] mas uma das mais distorcidas biblicamente, pois acaba por fazer, como observa Wynkoop, do decreto divino a causa primeira da salvação, ao passo que a morte de Cristo torna-se causa secundária e subsidiária, não sendo absolutamente essencial para a salvação, mas um elo de uma corrente predeterminada de eventos.[10] É como se o sacrifício de Cristo fosse um evento para cumprir tabela (decreto) e não um ato gracioso de um Deus cuja essência é o amor.
Muitas são as objeções sobre a doutrina da predestinação[11] e vale a pena avaliar as principais observações, começando por Armínio, que rejeitava o conceito supralapsarianista dos decretos de Deus por quatro razões:
1) Não era sustentado pelas Escrituras: os conceitos deterministas do supralapsarianismo transformam Deus num tirano que faz acepção de pessoas. Esses conceitos estão mais pautados numa teologia lógica e filosófica dos teólogos calvinistas, a quem Olson chama de calvinistas escolásticos,[12] do que na própria Palavra de Deus.
Em um de seus artigos, Armínio declarou que, “a regra da verdade teológica não deve ser dividida em primária e secundária; é una e simples, as Sagradas Escrituras.” Para ele, “nenhum escrito composto por homens, seja um, alguns ou muitos indivíduos, à exceção das Sagradas Escrituras [...] está [...] isento de um exame a ser instituído pelas Escrituras”, pois elas “são a regra de toda a verdade divina, de si, em si e por si mesmas.” Portanto, “é tirania e papismo controlar a mente dos homens com escritos humanos e impedir que sejam legitimamente examinados, seja qual for o pretexto adotado para tal conduta tirânica.”[13]
 2) Não havia sido apoiado por cristãos doutos e res­ponsáveis durante mil e quinhentos anos e nun­ca fora aceito pela totalidade da Igreja: Wyncoop conta que, em 1589, um leigo instruído, chamado Koornheert, da Holan­da, levantou uma “tormenta nos círculos teológicos por suas dissertações e escritos em refutação da teoria supralapsariana dos decretos divinos.”[14] O argumento de Koornheert era que, o ensino supralapsariansta de Beza tornava Deus a causa e o autor do pecado. A exposição brilhante e polêmica de Koornheert atraía um número cada vez maior de ouvintes e chegou-se a temer que seu pensamento solapasse a estrutura total do calvinismo, bem como a estabilidade política dos Países Baixos. Parecia que nenhum ministro era capaz de refutá-lo e, por isso, Armínio foi incumbido desta tarefa. “É significativo que o tremendo descontentamento gerado com a posição de Calvino e Beza, tenha levado um leigo a fazer tal coisa”.[15]
Armínio começou, então, uma séria revisão da doutrina da predestinação, particu­larmente na Epístola aos Romanos. Concentrou-se no capítulo 9, baluarte calvinista de seu dogma. Porém, quanto mais se aprofundava Armínio, mais lhe con­vencia sua investigação de que o ensinamento de Pau­lo estava em oposição à classe de predestinação que Beza ensinava. Embora Armínio não tivesse abandonado sua cren­ça na predestinação divina, em suas revisões, ele percebeu que os judeus criam que eles haviam sido divinamente predestinados para serem salvos e que nada poderia mudar este ato. Todavia, a Epístola aos Romanos foi escrita exatamente para mostrar a distinção entre a histórica soberania abso­luta e as condições da salvação pessoal, a qual sempre é pela fé, não por decretos.[16]
Armínio leu os escritos dos Pais da Igre­ja. Ele investigou e compilou evi­dências demonstrando que nenhum “Pai” fidedigno, isto é, digno de crédito, jamais havia ensinado os critérios de Beza. Ele constatou, ainda, que a du­pla predestinação particular de Calvino jamais havia sido oficialmente aceita pela igreja. “Para sua surpre­sa, descobriu que o mesmo Agostinho, não só antes da controvérsia com Pelágio, como principalmente depois, havia ensinado a completa responsabilidade moral.”[17]
 3) Deus se tornava o autor do pecado: Vejamos a seguir as próprias palavras de Armínio sobre esse questionamento:

“De todas as blasfêmias que podem proferir-se contra Deus, a mais ofensiva é aquela que O declara autor do pecado; o peso dessa imputação é aumentado seria­mente se lhe agrega que, segundo essa perspectiva, Deus é o autor do pecado cometido pela criatura, para poder condená-la e lançá-la à perdição eterna que lhe havia destinado para ela de antemão, sem ter relação com o pecado. Porque, desse modo, “Ele seria a cau­sa da iniquidade do homem para poder infligir o sofri­mento eterno”... Nada imputará tal blasfêmia a Deus, a quem todos concebem como bom... Não pode atri­buir-se a nenhum dos doutores da Igreja Reformada, que eles “abertamente declarem Deus como autor do pecado”... No entanto, “é provável que alguém possa, por ignorância, ensinar algo do qual fora possível, como claro resultado, deduzir que, por essa doutrina, Deus permaneça declarado autor do pecado.” Se tal for o caso, então... (os doutores) devem ser admoestados a abandonar e desprezar a doutrina da qual se tem tira­do tal inferência.”[18]

4) O decreto da eleição se aplicara ao homem ain­da não criado: objetivamente falando, se Deus tivesse decretado a eleição antes da queda do homem, então “a queda do homem tinha sido desejada por Ele”.[19] Por isso Deus teria de ser o autor do pecado! Laurence Vance explica que, segundo esse sistema, “Deus primeiramente decidiu eleger alguns homens para o céu e reprovar os outros homens ao inferno, de forma que ao criá-los, ele os fez cair, usando Adão como um bode expiatório, de forma que pareceria que Deus foi gracioso ao enviar os ‘eleitos’ ao céu e justo ao enviar os ‘reprovados’ ao inferno.” Ele explica, ainda, que “a característica distintiva deste esquema é seu decreto positivo da reprovação. A reprovação é a condenação deliberada, preordenada, predestinada de milhões de almas ao inferno como resultado do soberano beneplácito de Deus e conforme o ‘conselho da sua vontade’”[20] (Ef 1.11).

(...)

Leia mais em: COUTO, Vinicius. Introdução à Teologia Armínio-Wesleyana. Reflexão, 2014.


Notas


[1] BEST, W.E.. Definition of God’s Decree. In: ______. God’s Eternal Decree. WE Best Book Missionary Trust, 1992.
[2] STRONG, A. H. Teologia Sistemática. 2007, Hagnos, p. 617.
[3] HODGE, Charles. Teologia Sistemática. 2001, Hagnos, pp. 399-405.
[4] OLSON, Roger. História da Teologia Cristã:2000 anos de tradição e reformas. 2001, Vida, p. 468.
[5] Idem.
[6] JOINER, Russell E.. O Deus Verdadeiro. In: Teologia Sistemática. HORTON, Stanley M. (org.). 1996,  CPAD, p. 153.
[7] WAKEFIELD Apud GARRETT, James Leo. Teologia Sistematica. 2000, Casa Bautista de Publicaciones, p.452.
[8] PORTELA, Solano. Estudo Sobre a Predestinação. Disponível em: <http://www.solanoportela.net/artigos/estudo_predestinacao.htm> Acesso em: 12 de Fevereiro de 2014.
[9] Idem.
[10] WYNCOOP, Mildred Bangs. Fundamentos da Teologia Arminio Wesleyana. 2004, Casa Publicadora Nazarena, p. 33.
[11] Para um estudo mais acurado sobre as objeções da doutrina da predestinação, ver OLSON, Roger. Sim Para a Eleição; Não Para a Dupla Predestinação. In: ______. Contra o Calvinismo. 2013, Editora Reflexão, pp. 159-210.
[12] OLSON, Roger. Op. Cit., pp. 466-470.
[13] Ibid, p. 476.
[14] WYNCOOP, Mildred Bangs. Op. Cit., p. 52.
[15] Idem.
[16] NICHOLS, James; NICHOLS, Willian (Trad.). The Works of James Arminius. 1875, Thomas Baker, vol. III,, pp. 527ss.
[17] WYNCOOP, Mildred Bangs. Op. Cit., p. 53.
[18]NICHOLS, James; NICHOLS, Willian. Op. Cit., pp. 645-655.
[19] BERKOUWER, G. C.. Divine Election. 1960, Eerdmans Publishing Co., p. 257.
[20] VANCE, Laurence M.. Sistemas Lapsários. In: ______. O Outro Lado do Calvinismo. Material não publicado. Disponível em www.arminianismo.com.

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